Início Nuno Reis Reflexões

da demagogia e da pedagogia

   

Continua a ser característica nossa valorizar excessivamente o que diz este ou aquele ex-ministro, este ou aquele ex-dirigente, este ou aquele comentador de bancada. É quase como se o simples facto de "se ter passado por " imbua o "ex" de uma sabedoria e autoridade moral superiores. Não raras vezes, no entanto, um olhar mais atento ao que foi o consulado do douto comentador ou respeitável "ex" facilmente revela que o balanço da actividade do agora especialista foi tudo menos positivo em termos de resultados.


Mas pouco importa. A memória não é algo em que sejamos dos melhores. E, afinal, para quem vê no presente o seu trabalho ser escrutinado por quem, num passado até recente, não solucionou ou, pior, até ajudou a criar problemas cuja resolução agora cabe ao "titular", resta sempre um bálsamo: a contagem final para esse estado "supra" acima de qualquer crítica e para o estatuto especial de infalibilidade de "ex" começou logo no dia da... tomada de posse!


Descontada a ironia do parágrafo anterior, seria sempre positivo que quem tem, de facto, autoridade moral para criticar o fizesse. Mas frequentemente não é isso que acontece. É, portanto, habitual ver-se um conhecido "ex" Secretário de Estado, cujo mandato não se caracterizou por grandes feitos ao nível do controlo da despesa nem pelo lançamento de políticas de saúde pública que fiquem na memória, debitar permanentemente nos media a sua sabedoria.


O que é certo é que os cortes que hoje são incontornáveis, nessa como noutras áreas, não seriam seguramente da mesma magnitude ou da mesma urgência se tivessem sido feitos quando era suposto. Isso deveria levar os mais «atrevidos» a pôr a mão na consciência do que realmente fizeram quando tiveram o poder efectivo por contraposição às soluções miraculosas… que só agora parecem ter descoberto!

 

Temos, depois, a aplicação do princípio de que os "ex" detêm, por inspiração divina, a chave do "cofre", aos casos em que a vida pública sempre se orientou pelo lema "primeiro eu, depois eu… depois a República, não querendo eu".


Falamos da mesma pessoa que há pouco mais de um ano dizia ter sido ela própria que teve uma discussão com quem de direito sobre a necessidade de se fazer um pedido de ajuda internacional. A mesma  que se desfazia em elogios ao actual chefe de Governo, a mesma que governou em regime de tutela partilhada com credores externos e que, portanto, sabe o que é gerir sem autonomia, é aquela que hoje, confrontada com as medidas difíceis que nos impõem, alinha no coro de irresponsáveis que há pouco menos de 40 anos quiseram transformar o país numa espécie de datcha soviética no sudoeste da Europa.


Esta ideia de que os "ex" é que sabem e que, independentemente dos disparates que profiram, devem ver as suas palavras amplificadas sem contraditório ou comparativo com aquilo que foi a sua acção enquanto operadores das "alavancas" efectivas do poder, levaria a exemplos infindáveis. Mas uma boa regra tem sempre, no entanto, a excepção que a confirma.


E seria, de todas as formas, útil terminar com um outro exemplo. Por ser pela positiva permito-me nomear a pessoa: Ramalho Eanes. Nas mais recentes tomadas de posição públicas, e designadamente na entrevista que concedeu à televisão estatal, por mais que a jornalista o brindasse com elogio atrás de elogio entremeado com provocações fáceis à procura de respostas bombásticas, o entrevistado não cedeu ao populismo básico ou à vã glória de se tentar mostrar como modelo de virtudes na gestão da coisa pública.

 

Este “ex” teve todo o palco para se arrogar de uma ética superior aos demais ou dizer simplesmente "no meu tempo é que era", "eu é que sei e tenho autoridade" mas, pasme-se, Eanes preferiu fazer pedagogia em vez de demagogia, preferiu responder não como alguém que do alto da confortável poltrona de quem está “fora” pode enunciar todas as soluções aparentemente miraculosas mas como alguém que já «por lá» passou e tem consciência das dificuldades em que o país foi colocado.


Para alguns, os «tocados por Midas», ética republicana é tudo o que possa sair da sua boca. Para outros, infelizmente menos que os anteriores, ética republicana é aquilo que a sua acção credibiliza ou crebibilizou e que a noção da responsabilidade e sentido de Estado consagra ou consagrou.

 

 

Nuno Reis

 

121014

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no "Diário do Minho" -

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DE PORTER A SANTIAGO

 

Em 1994, Michael Porter, especialista mundial em estratégia, efectuou, a convite do Governo de então, um estudo sobre o nosso país.


Nesse trabalho, Porter formulou recomendações muito concretas e defendeu 6 áreas específicas (vinho, turismo, automóvel, calçado, têxteis, madeira e cortiça) como sendo aquelas em que Portugal tinha condições privilegiadas e potencial natural para criar riqueza.


Embora esse estudo sobre a competitividade nacional não tivesse merecido a devida atenção pelos Governos que se lhe seguiram, resulta interessante lançar um olhar sobre o país que hoje temos à luz das apostas então defendidas.


Desde logo, há que reconhecer que sectores como o calçado, mais até pela força empreendedora do associativismo empresarial do que pela acção concertada deste ou daquele Governo, são demonstrativos de uma evolução das nossas empresas no sentido inverso ao da competição pelo baixo custo. A qualidade da marca Portugal nesse sector é hoje reconhecida em todo o mundo e permite cobrar um «prémio» por essa diferenciação.


Mas se houve áreas em que o associativismo empresarial ou a força intrínseca dos empreendedores conseguiu dispensar a (in)acção de diversos Governos, outras houve onde, apesar de se terem feito progressos, poderíamos chegar mais longe.


O turismo, em particular, é uma área em que temos condições naturais para mais. É certo que na altura este sector correspondia a 5 por cento da riqueza gerada anualmente em Portugal e que hoje gera uns apreciáveis 14,7 por cento do PIB.


Mas é possível ir mais longe. O nosso Turismo é ainda excessivamente dependente da sazonalidade. E ir mais longe aqui pode passar, por exemplo, por fazer uma aposta mais séria no segmento do Turismo religioso.

Com o Plano Estratégico Nacional de Turismo actualmente em vigor, ainda «herdado» do primeiro Governo Sócrates, o turismo religioso nem sequer constitui um dos pólos principais de promoção!


Tal facto traz ainda maior perplexidade quando se constata que cerca de três quartos dos recursos nacionais correspondem a património material e imaterial de cariz religioso, entre igrejas, sinagogas, museus, arte sacra…

Hoje, apesar do enorme potencial ainda por explorar, calcula-se que o turismo religioso já corresponda a um total de 10 por cento do movimento turístico nacional.


Só o Santuário de Fátima, acolhe anualmente peregrinos oriundos de 140 países.

Sendo verdade que, como o próprio Turismo de Portugal e a Associação Mundial de Turismo Religioso reconhecem, os dados existentes estão longe de serem totalmente fidedignos, estima-se que além de Fátima, com os seus mais de 5 milhões visitantes anuais, destinos como o Bom Jesus de Braga, Sameiro e São Bento da Porta Aberta atrairão cerca de um milhão de visitantes anuais. A Nossa Senhora da Penha atrai, igualmente, um número significativo de visitantes.


Mas também em Portugal se nota o efeito positivo de outro centro religioso peninsular: Santiago de Compostela. A seguir ao chamado Caminho Francês de Santiago, é o Caminho Português Central de Santiago, com mais de 30 mil peregrinos anuais, que mais pessoas atrai. Só em 2010, foram contabilizados neste Caminho peregrinos de cerca de 52 nacionalidades (desde o Brasil à Nova Zelândia, Austrália, Japão e Coreia do Sul).


O Caminho Português Central de Santiago foi-se estabelecendo a partir do séc. XI e tendo como principais etapas Lisboa, Coimbra, Porto, Barcelos, Ponte de Lima e Valença, localidades atravessadas pela Estrada Real e nas quais confluíam outras vias secundárias do interior.


Sendo os recursos financeiros disponíveis para a promoção do Turismo Religioso, como todos os recursos, por natureza escassos, será fundamental que o Turismo de Portugal e o Governo não se demitam da sua função de apontar caminhos e definir estratégias. Não devem caber aqui dissonâncias nas estratégias de promoção ou construção de alternativas artificiais que não gozem da riqueza histórica das iniciais.


O exemplo do Caminho Francês de Santiago, cujo repositório cultural é Património da Humanidade e que foi classificado pelo Conselho da Europa, em 1987, como o primeiro Itinerário Cultural Europeu, de um total de 29 caminhos hoje certificados à escala da União, com todo o significado cultural e potencial económico que essas classificações encerram, deve ser fonte de inspiração para o nosso país.


Aproveitar estes recursos é fundamental não apenas na óptica da geração de riqueza mas também para assegurar a preservação de um património cuja manutenção não pode ser posta em causa pela crise que atravessamos.


Essa aposta traria muito a ganhar ao Minho. Será por isso importante que as forças vivas dos Distritos de Braga e Viana do Castelo saibam compreender esse potencial e deitar-lhe mão. E sem prejuízo dessa aposta, mais do que a estratégia particular de uma região, ter de ser um desígnio nacional. Estou convicto que até Porter… faria o mesmo Caminho!

 

 

Nuno Reis

 

120525

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 "O Primeiro de Janeiro" e no "Diário do Minho" -

 

 

 

 

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Fazer o que ainda não foi feito

 

De acordo com os dados da Organização Mundial de Saúde, estima-se que os esquemas fraudulentos consumam, em média, qualquer coisa como 6% dos gastos públicos nesse sector. Em Portugal, embora não haja nenhum estudo recente sobre esse fenómeno, pensa-se que o mesmo poderá desviar até 10% da despesa pública com compras em saúde.

 

Se partirmos do valor que o Estado português tem gasto em medicamentos e dispositivos médicos poderemos estar a falar de qualquer coisa como 270 milhões de euros que, todos os anos, estarão a ser desviados de forma fraudulenta. Sendo certo que este valor per se já daria que pensar, numa altura de crise económico-financeira mais ainda se impõe combater este fenómeno.


Não seria moralmente correcto, até pelos sacrifícios que estão a ser pedidos às pessoas, que o Estado continue a fechar os olhos a essa realidade. Esteve bem, pois, o Governo quando há dias tornou pública uma estratégia que juntará os Ministérios da Saúde e da Justiça no combate aos esquemas fraudulentos na saúde.


As fraudes com alguns medicamentos comparticipados a 100%, as prescrições falsas de fármacos para algumas doenças (por exemplo, as psiquiátricas), a falta de planos anti-corrupção na maior parte dos hospitais do País, em cujo aprovisionamento por vezes se teme existirem situações menos claras, são exemplos práticos de um «fechar de olhos» e de uma realidade com a qual um país em situação de assistência financeira externa não pode continuar a compactuar.


Tenho para mim que o valor de cortes na despesa em saúde exigidos pela troika para 2012, neste momento qualquer coisa como 1250 milhões de euros, é muito elevado e, se não for efectuado de forma pensada, poderia levar a consequências nefastas. Por outro lado, se pensarmos em diversas auditorias do Tribunal de Contas e nos mais recentes estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos ou mesmo no estudo do Grupo Técnico da Reforma Hospitalar, está estimado num valor entre 700 e 800 milhões de euros o valor dos desperdícios e ineficiências de gestão nos hospitais portugueses. Se somássemos a esse valor o montante que se estima estar a ser perdido por esquemas fraudulentos, como os acima descritos, estaríamos bem perto do tal valor exigido pela troika!


É, pois, possível, com sensibilidade, rigor, decisões políticas correctas, colaboração e corresponsabilização dos agentes no terreno (médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, gestores de unidades de saúde, farmacêuticos, etc.) fazer-se o que tem de ser feito sem prejudicar o acesso das populações à saúde. O aumento das listas de espera para consultas e para cirurgias não tem de ser um caminho inevitável, como também não tem de ser inevitável proceder-se a cortes cegos e que não se destinem a atacar os referidos desperdícios e ineficiências.


Actualmente, apesar da percepção dos Portugueses relativamente à qualidade dos cuidados de saúde que lhes é prestada por vezes não ser a melhor, a verdade é que, em vários indicadores, nos comparamos muito favoravelmente com os melhores resultados em saúde a nível dos países da OCDE. Um exemplo cabal disso mesmo é a nossa baixíssima taxa de mortalidade infantil.


Que os medicamentos inovadores continuem a chegar aos nossos hospitais públicos e a ser disponibilizados aos utentes do SNS depende, também, da capacidade dos decisores políticos e dos agentes no terreno fazerem bem o que deles depende. Voltando aos números da fraude e ao potencial de poupança que a mesma encerra: 270 milhões de euros é um valor que ultrapassa larguissimamente a receita que o Estado arrecada com as taxas moderadoras e até, a título de exemplo, os próprios encargos com o tratamento de doentes renais em hemodiálise.


As crises podem também constituir excelentes oportunidades para abandonar aquela que tem sido a receita (errada) tradicional de se pensar que é atirando dinheiro para cima dos problemas que os mesmos se resolvem. Um conhecido politólogo americano, e antigo Chefe de Gabinete de Barack Obama, disse certo dia que as crises graves são oportunidades demasiado importantes para serem desperdiçadas. Atacar os desperdícios, combater a fraude, alocar melhor os recursos existentes, é o caminho desejável no sector da Saúde, o qual, a bem de todos, terá de ser bem sucedido.

 

 

Nuno Reis

 

120208

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"O Primeiro de Janeiro" e no "Diário do Minho" -

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Um conto de natal

 

Em época natalícia, muitos se recordarão de um conto de Charles Dickens que narra a história de um homem avarento que na véspera de Natal é visitado por três espíritos: o do passado, o do presente e o do futuro.


No curto espaço de uma semana, a política portuguesa foi revisitada por um "fantasma" de um passado (ainda recente) e por um "fantasma" do presente. No primeiro caso, a mensagem, embora indirecta, foi suficientemente perceptível: andam os meus pobres compatriotas a tratar de pagar a factura das dívidas que tão diligentemente dupliquei e eu até aprendi na escola que as dívidas dos Estados não são para pagar... No segundo caso, a mensagem, embora num tom mais primário, foi uma variante da primeira.


Na escola, pelo menos na tradicional, aprende-se coisa diferente. Por exemplo, um conceito interessante chamado "armadilha da dívida". Quando as dívidas se vão acumulando, em efeito bola de neve, contraem-se novos empréstimos para pagar empréstimos antigos, até ao ponto em que já nem a riqueza gerada é suficiente para assegurar o serviço da dívida. A despesa de consumo e investimento é cortada para se pagar mais e mais juros, a capacidade de gerar mais riqueza diminui e os encargos vão ficando cada vez mais insustentáveis.


Esta "armadilha" pode ser traduzida num exemplo bem prático: aquilo que para o ano Portugal pagará de juros de dívidas vencidas é qualquer coisa como 8 mil e novecentos milhões de euros. É mais do que os cerca de 8 mil e duzentos milhões de euros que o Estado gastará em saúde e praticamente o valor total de receita que arrecadará em IRS!


Essa factura devia ser agitada à frente dos que acham que as dívidas se gerem mas se esqueceram de o fazer, bem como dos que acham que podemos pura e simplesmente não pagar os encargos que nos deixaram mas não explicam como é que o país poderia sobreviver sozinho. A esses, que ainda por cima não têm sequer a humildade de reconhecer as barbaridades que dizem (já não digo, no caso do "espírito do passado", assumir o fracasso da política que seguiu) seria de colocar algumas questões simples.


Não entrando sequer no campo das finanças públicas, perguntar apenas: se um país  importa 80% dos cereais que consome e pura e simplesmente deixa de honrar as suas dívidas com o exterior o que diriam os seus fornecedores quanto a novas encomendas? Quem satisfaria as necessidades alimentares desse país? Ou noutro exemplo igualmente muito prático, se um país tem uma dependência energética do exterior que corresponde a quase um terço do défice da balança comercial e agora assume que o caminho é não pagar as dívidas o que aconteceria? Alguém estaria interessado em vender petróleo a um país "caloteiro"? E quem fala nestes exemplos pode multiplicá-los para outros sectores. Numa economia pequena e aberta como a nossa quem mais teria a perder com o isolamento seríamos nós.


Regressando aos "nossos fantasmas", se a aparição de um explica como é que pudemos chegar a este ponto, a do outro explica como é que o populismo, a demagogia, a irresponsabilidade campeiam facilmente em tempos de dificuldade. Não por acaso a história recente do mundo, dá-nos bons exemplos de governantes que chegaram ao poder alcandorados nas desgraças económicas dos seus povos e acabaram por levar os seus países à ruína ou à guerra…


Valha a verdade que nunca nos últimos anos tivemos um tamanho choque com a realidade como o que 2011 nos trouxe. Que os cantos de sereia daqueles que nada aprenderam com os seus erros e agora se entretêm a doutrinar discípulos igualmente irresponsáveis, não voltem a enganar os incautos susceptíveis a soluções "fáceis" para problemas bem difíceis.


Na história de Dickens, o avarento e insensível Scrooge só se regenera depois de recordar o seu passado, ter consciência do presente e perceber o que o futuro lhe reservaria caso não mudasse. Nesse Conto de Natal há uma metáfora de redenção humana. A ideia de que todos, por pior que sejam, podem inverter o rumo da sua vida.


Tal como a "armadilha da dívida" é válida para a vida das pessoas, das empresas, dos países, também as histórias de redenção não têm de se aplicar apenas ao indivíduo. Saberemos dar a volta por cima se o choque com a realidade que 2011 nos trouxe se transformar num choque de responsabilização individual e colectiva e num desígnio de superação enquanto povo.


 

Nuno Reis


111220

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mau tempo no canal

 

Entre uma execução bem sucedida do Orçamento de Estado (OE) para 2012 e as metas às quais Portugal se obrigou, no memorando negociado entre o governo socialista e o triunvirato de financiadores externos, vai uma distância de menos de 100 milhões de euros. O mesmo é dizer que, apesar de todos os sacrifícios e medidas difíceis para as famílias e empresas que esperam os portugueses no próximo ano, a margem de erro que existe é pouca ou nenhuma. Basta que um qualquer instituto derrape nas contas, os juros a pagar subam ou a taxa de crescimento da economia seja ainda inferior às previsões já de si recessivas, para o cumprimento dos objectivos ficar mais difícil.

 

Desde a apresentação da proposta de Orçamento, há apenas duas semanas, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) já veio rever em baixa a sua previsão de crescimento da economia da zona Euro de 2% para 0,3%. Não há cenários macroeconómicos que resistam. Se numa economia como a nossa em que, por força das circunstâncias, assistiremos a uma redução da procura interna e do investimento e dependeremos do comportamento das exportações para a recessão não ser ainda mais acentuada, estas previsões da OCDE quase obrigariam a uma revisão dos pressupostos e previsões contidos no nosso OE. Vivemos tempos de muita incerteza, de facto.

 

No entretanto, com a mesma cegueira mental que levou nos últimos anos Sócrates e seus apaniguados a negar a existência de uma crise internacional, primeiro, a dizer que a crise não chegaria a Portugal, depois, e, por fim, que seríamos os primeiros a sair da crise, prrosseguindo simultaneamente na armadilha do endividamento público, o “novo” PS tem preferido negar a realidade.

 

Não surpreende. Não se constroi um novo projecto político em poucas semanas de uma nova liderança. Para mais quando os protagonistas da anterior governação continuam a ocupar um terço da actual bancada parlamentar. Daí se perceba, também, a suprema tentação de votar contra o OE em final de Novembro. Simultaneamente, a vingança face à derrota eleitoral e o lavar de mãos face ao que aí virá. Lavar desde já as mãos sobre um caminho exigente de desendividamento e redução do défice e sobre todos os sacrifícios que nos esperam e, ao mesmo tempo, lavar a imagem de um político no exílio mas ainda, apesar de tudo, com ambições.

 

Não admiram pois os telefonemas de Paris. Não admira por isso ver alguns dos principais lugar-tenente de Sócrates continuarem a defender que com o malfadado PEC 4 Portugal teria resolvido os seus problemas. Só ainda não conseguiram explicar é que se os actuais 78 mil milhões de euros de empréstimo ao abrigo do acordo com a Troika não chegam sequer para fazer face às necessidades de financiamento das empresas do Estado, como é que o PEC IV, que não tinha associado nenhum empréstimo, daria para o Estado continuar a pagar todos os meses, nos próximos dois anos, salários de funcionários públicos, pensões de reforma, apoios sociais, manter as escolas e hospitais abertos, etc.

 

Que mesmo com todas estas pressões, Seguro tenha conseguido resistir à tentação socrática é um sinal de força para o interior do seu partido mas sobretudo um sinal positivo para o exterior. Num momento em que Portugal se tenta distanciar do que se passa noutros países em dificuldades, o facto de apenas 15 por cento do Parlamento (BE, PCP e Verdes) votar contra o Orçamento de Estado para 2012 é um contributo relevante para a nossa imagem externa.

  

Alguns dos que continuam a vender a patranha do PEC 4 têm sido também os principais porta-vozes de uma outra «narrativa» para enganar o português distraído: a de que os pressupostos do acordo com a dita Troika representam ainda, actualmente, a situação real do país.

Mais uma vez, não é verdade. O retrato actual do país não parte dos mesmos pressupostos do memorando. Nem podia. Hoje sabe-se que só nos primeiros seis meses deste ano, com governo socialista em funções, já se tinha esgotado 70 por cento da margem de défice que nos era permitido para este ano.

 

A dívida oculta da região autónoma da Madeira (570 milhões de euros), o buraco adicional no BPN (370 milhões), as quebras na receita fiscal estimada (660 milhões de euros), os desvios relacionados com promoções salariais indevidas (270 milhões de euros) e o acréscimo de juros de dívida (169 milhões), entre outros montantes menores já revelados pelo Instituto Nacional de Estatística, ajudam a perceber que só com a sobretaxa extraordinária sobre o subsídio de Natal de trabalhadores do sector público e privado já este ano, bem como o recurso ao fundo de pensões da banca, será possível cumprir o limite de défice em 2011.

 

Mas esses “esqueletos no armário” ajudam a explicar algo mais. O porquê de no próximo ano termos que implementar medidas adicionais àquelas que já estavam previstas para 2012 e 2013. Parte dos desvios referidos acima não são de natureza temporária, nomeadamente aqueles com despesas de salários e juros.

 

De entre o esforço pedido aos portugueses nos próximos dois anos, aquele que recai sobre funcionários públicos e pensionistas, é o que mais reacções tem suscitado.

Mas não nos iludamos. Os cortes nos subsídios de Natal e Férias só serão temporários se entretanto, nestes próximos dois anos, o Estado for capaz de diminuir a sua despesa total de forma estrutural, nomeadamente as despesas com pessoal.

 

Pode parecer duro a todos aqueles que sofrerão com estes cortes mas a verdade é só uma. Estes cortes apenas permitem ao Estado ganhar tempo para fazer as reformas necessárias. E entre as quais, a mais difícil e que exigirá maior coragem e sagacidade política é precisamente a da reforma do Estado. Que Estado podemos ter com a riqueza que geramos actualmente? Quais as funções absolutamente essenciais que têm de continuar a ser desempenhadas? Em que sectores e de que forma deve o Estado continuar a operar ou ser mero regulador? Que tipo de Educação devemos ter nas nossas escolas? Como poderemos tornar o Serviço Nacional de Saúde mais eficiente, cortando nos desperdícios e mantendo a qualidade e o acesso aos cuidados de saúde?

 

São essas algumas das questões fundamentais às quais o Governo, o Estado no seu todo, terão de dar resposta nos próximos tempos. A redefinição do Estado que queremos e aquele que podemos ter com aquilo que é o nosso real nível de vida face ao que produzimos é o grande Desafio que se nos coloca «cá dentro».

fora, e como já vem sendo hábito no último ano e meio, o Velho Mundo continua deseperadamente à procura de um rumo e de um pouco de paz. Não começasse a ser já normal esta mania de em cada Cimeira Europeia a declaração oficial, acompanhada da costumeira foto de conjunto dos líderes, proclamar “desta vez é que é, temos solução definitiva para o problema grego” e o que se passou nos últimos dias seria do domínio do surreal. Depois de na passada semana ter sido apresentado um novo arsenal de combate à crise da dívida soberana não tivemos de esperar muito por novos desenvolvimentos.

 

A substituição de uma assentada das chefias militares gregas, como que a abrir azo a especulações de que algo de grave se poderia vir a passar, ao mesmo tempo que se convoca (e depois desconvoca) um referendo para avaliar se o enésimo pacote de austeridade teria apoio popular, as negociações para um novo Governo e os capítulos que se seguirão, mostram uma Grécia entretida num perigoso jogo de "roleta russa".

 

E infelizmente tal situação tem repercussões óbvias naquilo que é a nossa luta.

Como o náufrago que em mar encapelado se tenta manter à tona, as últimas notícias que chegam de Atenas são como o peso morto que se agarra à perna lusa e a puxam para o fundo.

 

Sem pensar em alternativas gravosas e com consequências imprevisíveis, o único que nos resta é cumprir a nossa parte, implementar as reformas a que estamos obrigados sem nos desviarmos do caminho. Se um ajustamento dos termos de assistência financeira seria sempre bem-vindo, para tal acontecer é fulcral demonstrarmos que somos diferentes. No fundo, demonstrar que somos capazes de nos governar a nós próprios.

 

Nuno Reis

 

111104

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"O Primeiro de Janeiro" e no "Diário do Minho" - 

 

 

 
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O melhor desempenho na Assembleia

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Francisco Louçã - 7.1%
Bernardino Soares - 6.3%
Heloisa Apolónia - 3.6%
Telmo Correia - 0.9%
João Semedo - 4.5%
Luís Montenegro - 17.9%
Nuno Magalhães - 3.6%
Carlos Zorrinho - 0.9%
António José Seguro - 15.2%
Carlos Abreu Amorim - 12.5%
Outros - 15.2%

Total de votos: 112
A votação para este inquérito já encerrou em: 30 Nov 2013 - 12:33